A Informação Passada a Limpo

A Informação Passada a Limpo

Tributo ao amigo Kley

Texto enviado [via email] por Joana D'arc Vieira- Júnia do seu Feliciano

"Bela morena, tu já vem chegando, já estou gostando de te ver assim, o povo na praça está te esperando que é pra mudar essa vida tão ruim"....

Ainda lembro da época em que brincávamos de cemitério nas ruas da pequena vila do Km 47. A rua era lugar de criança brincar. Ali, a vida nos permitia conhecer todos que moravam naquele interior. Menino correndo atrás de pipa, jogos de petecas, arraial, gente que ficava feliz quando chegava o parque para a festividade de Santa Luzia. Carrosséis, espalha-brasa, roda gigante. Brinquedos enferrujados que substituíam a velha barquinha de madeira feita artesanalmente por um senhor morador de lá. Luzes que embelezavam as nossas noites, jogos de pescarias, bozó, bingos e barracas de cachorro-quente que ficavam às margens da BR 316, um luz única.

Nós éramos felizes... mesmo com aqueles brinquedos velhos e enferrujados. Autopistas antigos mas que eram sensação para aquelas crianças acostumadas a brincar de pira na grama da praça, esconde-esconde com olhares brilhantes e pulsação de moleque levado em sábados de missa das crianças. Ninguém dizia que aqueles coroinhas, meninos santos ao redor do padre Otacilho, seriam os mesmos ao redor dos bancos quebrados da velha praça. Obedecíamos ao sino na chamada para a Matriz, íamos à igreja, ao catecismo, mas depois virávamos verdadeiras pestes no corre-corre e escorregões nas únicas ruas asfaltadas com paralelepípedos.

Tempos das festas tradicionais, da dança Luziense e do SALUDOPA. Não éramos crianças com nome, tínhamos, todos, apelidos... Junia Pupunha, Neguinha da Gorete, Tatá da Albertina, Nego e Naldo da padaria, Fia, Santa e Melque do seu Bebé, Cacá da Dôra, Batata do Feliciano, Japonês da padaria, Jeová, Beijinho, Celson, Ednaldo do Manuel Pinto, Hélia, Lisandra, Jorginho, Leley, Nega e baixinha da Gorete, Jorge, Norinha do Neguinho do Côco, Ció do Pitonho, Francisquinha do seu Pedrinho, Cris, Charles do Manelão, Elon, Soaraya, Leck, Régia, Reinaldo e tantos outros que fizeram histórias na Florentina Damaiceno. Época da famosa e tão esperada Festa das Flores, época em que a piscina "bombava" aos domingos. Época em que os bingos de moto eram o acontecimento do ano, dos agitos, do house, do João Borracheiro, danceteria do Alonso. Época de gente feliz e inocente. Época em que morte só mesmo por acidente, velhice ou doença.

Lá no nosso interior, a gente pouco ouvia falar em tiro, assalto, sequestro... Criança andava de calcinha pelas calçadas e não era estuprada, eu nem sabia o que era pedofilia. Padre era respeitado, almoçava na casa da gente e a família ficava toda orgulhosa. Professor era autoridade, a gente não levantava a voz nem por reza, nota vermelha era motivo de surra, castigo e vergonha. Boletim rendia dinheiro, passar de ano rendia presente. A gente usava uniforme da escola pública e estufava o peito, cantava hino antes de entrar em sala com a mão no peito, desfilava no sete de setembro, arrasava em festa junina na quadra da escola e fazia a primeira comunhão.

Adorávamos o arraial, íamos para o leilão, morríamos de medo do seu Antonio Mineiro da fazenda Boa Esperança e nos pelávamos de pavor do Ozório, o fazendeiro era temido pelas bandas de lá. No 47, nossa mãe ensinava a respeitar os mais velhos, em tempo de Semana Santa, pedíamos a benção de joelhos. Na quaresma íamos para as Santas Missões e a cidade ficava sem festa durante os quarenta dias, apanhávamos milho, fazíamos pamonha, assistíamos teatro no Salão Paroquial. Época das grandes professoras: Nadir, Benezinha, Dide, Graças Souza e Araujo, Vanda, Socorro e Nazaré Farias. Época em que comprávamos pano pra fazer roupa, dona Adalgiza, costureira de primeira mão, ela e sua máquina Singer de pedal davam vida à roupa que a gente escolhia no catálogo velho e amassado, modelos copiados que viravam moda nas festas dos grandes temas: Preto e Branco, Preto e Vermelho, Sex Appeal, Flores, Debutantes, Dos Namorados, Festival do Chopp.

Época em que a gente era feliz e não sabia. Hoje, a vila virou Cidade, prefeitos como Raul Motta e Juraci deram espaço a grandes desavenças políticas. Política na cidade agora é coisa séria, da até morte, separa famílias, divide irmãos. Emprego é motivo de chantagem, ameaça e o povo chegou ao poder... Só não se sabe se realmente é ele quem manda lá. A cidade mudou, as ruas de piçarra deram espaço ao asfalto, ladeiras onde nós descíamos de braços soltos nas monaretas e calóis já nem existem mais, a máquina tirou tudo pra tornar o superfície homogênea, famílias inteiras partiram pra outras cidades em busca de sobrevivência, criou-se e o bairro novo, meu interior agora tem até invasão, gangues... A violência é gritante, o rio Curí foi engolido pela poluição, peixe agora só em açudes... Crianças sem mães, filhos sem escola, gente sem emprego, igreja vazia, feira aos sábados, festas de aparelhagens, maconha, injustiça, roubos, assaltos, seqüestros e assassinatos.

Soube hoje que o Kley morreu. Estou paralisada diante da tela do computador, falei com a Neguinha que chorava desesperada do outro lado ao telefone... Perguntei pela Gorete, sua mãe, mulher sofrida, tantos problemas, criou os filhos sem a ajuda do pai, muitos conflitos entre os irmãos. Senhora de luta, desde criança eu já olhava pra ela com um olhar diferente, pensei naquela época que era pena, hoje sei que era orgulho. Convivi muito na sua casa, fomos vizinhas, amigas.

Hoje soube que seu único filho morreu: degolado, cortaram-lhe o pescoço, o braço, tiraram-lhe os pulsos, a vida, a juventude... Estou triste, por ele e por todos os outros amigos ou moradores que perderam a vida assim, no auge de tudo, com filhos pequenos, deixando outros jovens viúvos... Sinto dor, mas a dor maior, é saber que ele não será o único e nem o último. Sinto dor pela morte da infância das crianças que ainda vivem por lá, elas terão sua ingenuidade roubada com a mesma crueldade das grandes cidades...

Não viverão o que nós, eu e ele vivemos. Porque santa Luzia agora é cidade habitada por gente que não suporta uma discussão e que se acha no direito de matar e entristecer toda uma família e uma cidade. Meu luto é pela perda da paz na minha cidade, quem tem nome de santa, mas vive dias de cão com tanta injustiça e impunidade.

Cidade pequena, mas convive tão cedo com tamanha crueldade e brutalidade. Estive lá no carnaval, vi, bebi e dancei com o Kley. Conheci seu filhinho, sua esposa - tão jovem e já traumatizada. Ficarão boas lembranças, bons momentos, dele e dessa cidade que já não é mais a mesma faz tempo. Pensa-se muito em política e pouco em sociedade, dignidade, saúde e principalmente em educação.

Vá com Deus, amigo! Olhe por nós... Jesus proteja e acalante a tua mãe. Que o teu filho possa gozar da velhice que tu não conheceste e que o senhor nos abençoe...

Amém.

Joana Vieira – Júnia do Feliciano aos que estão aí.

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